05 outubro, 2020

Eu sou um Coach da Morte

Os coaches motivacionais ajudam as pessoas a concretizar seus objetivos pessoais e profissionais, apoiando seus clientes enquanto eles navegarem por todos os obstáculos que a vida lhes lança. Os Coaches da morte desempenham um papel diferente, que só começa depois que seu coração para de bater.


Morrer não é fácil, mas aceitar a morte é ainda mais difícil – é aí que eu entro. Eu trabalho com os falecidos recentemente, apoiando-os enquanto se ajustam à vida após a morte.


É um trabalho difícil, muito perigoso também, mas amo cada momento de uma forma que você não acreditaria. Quando você enfrenta a morte todos os dias como eu, a vida se torna muito mais doce.


Garet foi meu primeiro cliente “problemático”, todos os outros até aquele ponto eram passivos e ansiosos para fazer a transição. Um menino tímido e sensível, Garet foi espancado até a morte por um grupo de brutamontes ansiosos por qualquer motivo para lutar. Em um dia sufocante de verão, Garet tropeçou em seu ponto de encontro e testemunhou coisas que não deveria. Ele se tornou um risco e aqueles vilões decidiram que sua vida não valia a pena sua liberdade. Eles jogaram seu corpo sem cerimonia em um bosque de trepadeiras espinhosas, mais tarde encontrado por um par de observadores de pássaros.


Ao chegar do outro lado, Garet se tornou algo totalmente diferente. A brutalidade e a indignidade de sua morte distorceram sua mente e Garet se transformou na escuridão que o consumiu. Seu espirito era vicioso, um cão raivoso que atacaria qualquer um que se aproximasse. Ele possuiu vários rapazes, feriu mais uma dúzia e aterrorizou a comunidade que ele chamava de lar.


Quase nove anos depois da morte de Garet cheguei a um vilarejo sonolento de Wisconsin situado da fronteira de Illinois. Os mortos não podem pedir ajuda, eles nem mesmo sabem que precisam dela na maioria das vezes. Os coaches da morte são designados para os casos por supervisores, por isso procuramos nossos clientes e não o contrário.


- Quarto para um, para fumante, se tiver.


Uma mulher rouca e séria estava sentada atrás de uma mesa de recepção degastada. Ela arrastou com a voz rouca a ponta de um cigarro, amassando-o em um cinzeiro já cheio.


- todos nossos quartos são para fumantes madame, não é uma delicia?  - Ela riu secamente com uma tosse cheia de muco – Isso custará $ 65 por noite, mais impostos.


- Ótimo, não devo ficar aqui por mais de uma semana. Presumo que isso não seja um problema? – Eu respondi educadamente.


- Você pode ficar aqui contanto que seu cartão de crédito continue passando, essa é a nossa politica – Suas palavras ecoaram enquanto eu entrava no corredor vazio do motel.


Os quartos do Cabine Vermelha cheiravam a desespero e sonhos desfeitos. A decoração chocantemente desatualizada, juntamente com a falta de saneamento e manutenção, tornaram a estadia particularmente desagradável.  Infelizmente, os coaches da mortes não ganham muito e nós pagamos do bolso, então eu pego o que posso conseguir.


Abrindo minha pasta, fixei uma serie de recortes de jornais e fotos desgastadas em um quadro de cortiça que pendurei na parede. Flocos de papel de parede caem em cascata enquanto reposiciono a prancha, garantindo que eu possa vê-la perfeitamente do colchão fino e levemente manchado.


Uma linha de tempo da vida e morte de Garet apareceu diante de mim. Ele era uma criaça solitária e cheia de traumas, não conseguia encontrar uma única imagem dele sorrindo ou com amigos. Garet foi criado por uma mãe solteira que parecia ter saído do estilo gótico americano. Uma mulher extremamente modesta e religiosa, ela ensinou Garet a temer profundamente o mundo profano.


Uma foto do jovem condenado por seu assassinato fez a transição da linha do tempo para a próxima fase da jornada de Garet, sua morte. Dos oito meninos envolvidos na agressão, apenas o mais velho enfrentaria acusações graves – e ele só pegou dez anos. Os outros receberam sentenças brandas como réus primários no sistema de justiça juvenil. Eles foram implacáveis e, após serem liberados, os meninos mais novos usaram sua morte como medalha de honra para aumentar suas atividades criminosas.


A próxima foto importada era uma cena de crime respingada de sangue, quatro jovens massacrados em uma área arborizada isolada. Rostos contorcidos em posições não naturais, feridas de punição e ossos quebrados indicavam um longo período de tortura antes da morte. Outros quatro sobreviveram ao ataque, mas foram terrivelmente desfigurados e internados indefinitivamente em instituições psiquiátricas.


Não estou justificando suas ações, mas esse deveria ser o espirito de justiça de Garet necessário para descansar. Em vez disso, teve o efeito oposto. Sua loucura só cresceu, e a violência piorou continuamente. Garet atacou impulsivamente, atacando aqueles que entravam na floresta à noite.


A reabilitação é sempre possível, ou assim acredito, mesmo em casos como o de garet.


Muitos em seu setor discordariam dessa mentalidade, argumentando que espíritos como Garet não merecem mais a redenção; Eu tive mais uma discussão acalorada debatendo esse problema. A verdade deles era impossível de aceitar, porque Garet e outros como ele não poderiam ser salvos, então eu também não estaria.


Por vários dias, eu persegui as pessoas que conheceram Garet. Sua mãe, professores, valentões de playground e o casal que descobriu seu corpo. No inicio, observei de longe, mas assim que me senti confortável o suficiente, iniciei uma abordagem mais direta.


- Mãe, eu não quero incomodar, mas você parece uma mulher justa e temente a Deus; mão como os outros canalhas desta cidade. Você faria a gentileza de ajudar outra alma justa em seu caminho para salvação? – Deitado em um sotaque sulista tão grosso quanto melaço, tirei meu chapéu para a mãe de Garet.


Um leve sorriso surgiu em seus lábios – Você deve ser um advinho, ou talvez esteja sendo modesto. Me chamo Britany Tilaway, prazer em conhece-lo – Ela estendeu a mão eluvada, fazendo uma leve mesura.


- Natanael Peter, e o prazer é todo meu – Apenas metade da frase era verdadeira.


Sob o pretexto de procurar uma casa de culto adequada, perguntei a Sra. Tilaway se ela estaria disposta a me levar à sua igreja; ela disse sim sem perder o ritmo. Eu sabia que ela havia crescido no sul de Kentuky, filha de um rigoroso pregador batista. Para garantir sua cooperação, imitei o homem que ela mais admirava – seu pai.


- Seu sobrenome parece familiar, por acaso você não teria família em Kentucky? – Eu perguntei despretensiosamente, colocando a isca.

- Oh meu Deus, Sim eu sou de lá. Você conhece minha família? Não restaram muitos de nós hoje em dia, então presumo que isso já faça muito tempo – sua voz vacilou ligeiramente.

- Havia um pregador chamado Tilaway que conheci quando jovem, ele mudou completamente a minha vida. Eu estava vivendo uma vida de pecado sem arrependimento antes de conhece-lo, mas ele expulsou os demônios e me transformou no homem de Deus que você vê hoje. Esse pregador é um de seus parentes?


A Sra. Tilaway olhou para mim com admiração e orgulho, uma faísca brilhando borbulhando em seus olhos: - Esse foi meu pai, eu simplesmente não posso acreditar nisso, mas você está falando do meu papai – sua voz estava tremula.


- Deus é bom, Deus é grande! – Exclamei com entusiasmo – Sra Tilaway, você vê o que está acontecendo aqui? Deus nos uniu, isso não é coincidência, este é o destino divino.


Admito que senti uma ponta de remorso, estava manipulando essa mulher por meio de sua fé e reverencia por seu falecido pai. Cada palavra que saiu da minha boca foi cuidadosamente roteirizada e ensaiada, até o sotaque. Motivos à parte, eu estava usando essa mulher, mesmo que fosse para salvar a alma de seu filho.


- Posso ter a ousadia de lhe fazer uma pergunta? – Eu perguntei respeitosamente quando chegamos á igreja.

- Não vejo porque não – Respondeu ela com uma pitada de entusiasmo. 

- Eu sou um naturalista e estou aqui para trabalhar. Estou estudando uma espécie rara de insetos noturnos nativos da área circundante e sei que parece estranho, mas acredito que Deus quer que você faça parte disso. Eu não sei por que, mas parece que ele está me comandando a lhe convidar agora mesmo.


Seu sorriso cresceu mais amplo – Como meu pai me disse uma vez, “você ou anda com os justos ou sem ninguém.”.


Eu sorri de volta, sabendo que meu plano estava dando certo, - Vou entender isso como um sim. Encontre-me aqui ás oito, vejo você então.


A mãe de Garet, sem nada mais, foi rápida – Chegando exatamente no horário programado.


Com um véu branco pendurado no ombro, ela estremeceu ligeiramente com a brisa fresca. Eu estava esperando há uma hora, folheando a bíblia sem pensar em um banco de parque próximo.


- Boa noite srta, Tilaway, obrigado por sua oportunidade – Levantando-me do banco, me curvei como um verdadeiro cavalheiro do sul faria.

- Boa noite Sr Peter, podemos ir?


Eu a conduzi até os limites da cidade, divagando sobre revelações bíblicas e o secularismo hedonista dos jovens; Eu estava dando carne vermelhar para o leão. Ela prestou atenção em cada palavra minha, sem saber que eu tinha lido todos os sermões que seu pai havia publicado, regurgitando-os o melhor que pude.


Quando entramos na floresta, seu humor mudou visivelmente. A Sra Tilaway estava nervosa, mordendo o lábio ansiosamente. Ela não tinha como saber que estávamos indo para o local do assassinato do seu filho, estava muito muito escuro, mas ela estava claramente desconfortável com a floresta.


- Você está bem? Você parece um pouco apreensiva – Seguindo um caminho coberto de palha, olhei para a mãe de Garet com um olhar de preocupação planejada.

- Estou bem, só está frio – respondeu ela de forma pouco convincente.


A floresta estava mortalemente silenciosa. A Sra Tilaway pode não ter notado, mas eu estava totalmente ciente do silencio ensurdecedor. À medida que nos aproximávamos da campina onde a vida de Garet havia terminado, o ar ficou visivelmente mais frio. Nuvens negras rolaram inesperadamente do leste, cobrindo as estrelas com seu abraço.


A mãe de Garet parou de andar quando a campina apareceu. Você podia ver a compreensão em seu rosto, a compreensão sombria de onde eu a tinha levado. Ela virou a cabeça para mim, os olhos franzidos de raiva.


- Quem é você? Quem é realmente você? – O ódio fervendo logo abaixo da superfície, a Sra Tilaway se afastou de mim.

- Eu sou um Coath da morte e estou aqui para ajudar seu filho a encontrar a paz. Lamento sinceramente por mentir para você, mas isso não pode ser feito sem você – Um som de estalo sinistro ecoou pela floresta enquanto tentáculos de nevoa espessa envolviam casca de musgo.

- Você não é cristão, Você é um vaso de Satanás! Isso é magia negra do demônio e não farei parte disso. Meu filho está com seus avós no céu, como você ousa dizer o contrário!


Enquanto ela se enfurecia comigo, ela não percebeu a nevoa tomar forma e escurecer. Como uma escultura moldada em um bloco de mármore, uma figura emergiu.


- Mãe? Você pode me ouvir? Mãe? – Uma voz desencarnada flutuou por entre as árvores. A sra Tilaway recuou, a cor sumiu de seu rosto.

- Não, por favor Deus, Não! – Ela estava abalada, murmurando para sí mesma.


Não tenha medo. Isso não é um demônio ou magia negra, é seu filho. Com você aqui, ele é inofensivo quanto foi em vida. Sua presença pode trazer-lhe paz, ele só precisa de um pouco de convencimento da minha parte – Tomando um momento reconfortante, alcancei a Sra Tilaway.


O método mais eficaz para pacificar os espíritos é introduzir uma pessoa ou objeto querido em seu ambiente. Quando estava sendo treinado, vi a humanidade retornar até mesmo às lamas mas dementes quando essa técnica foi empregada. Confiante de que havia neutralizado o perigo, coloquei uma mão reconfortante nas costas da mãe de Garet. Imediatamente, ela empurrou a mão e começou a hiperventilar.


- Você não entende. Eu sei que é meu filho, é por isso que estou tão assustada. Senhor me ajuda, você sabe o que você fez?


Um vento forte soprou ao nosso redor, levantando sujeira e folhas mortas. A nevoa se solidificou e um Garet ensanguentado apareceu flutuando acima do solo.


- É tão bom ver você mãe, nunca pensei tivesse vindo tão longe na floresta. Achei que você soubesse melhor – Garet abriu um sorriso diabólico e cheio de dentes. Suas pupilas queimavam vermelhas, afundando em piscinas pretas.


A Sra Tilaway disparou, fugindo o mais rápido que suas pernas de frango podiam suportar. Antes que ela chegasse a três metros, uma videira explodiu do chão e se enrolou com força em seus tornozelos. Ela caiu bruscamente no chão, sua cabeça batendo contra o cascalho.


- Onde você vai mamãe? Precisamos conversar muito sobre isso – Garet oscilou entre varias oitavas.

- Conversar? Não temos nada para conversar. Você é um monstro Garet, toda a cidade sabia disso. Se eles não tivessem matado você, você teria os matado e muito mais junto com eles. Se você quer que eu implore, peça perdão, então você está sem sorte. Não me arrependo de nada, na verdadem teria mandado você para a floresta de novo se tivesse tido a chance – Ela estava cheio de veneno, cuspino por entre os lábios franzidos.


Os membros de Garet se alongaram, retorcendo-se em vinhas espessas e espinhosas de névoa.


- Eu era o que você me criou para ser. Tudo que eu conhecia era violência, tormento e abuso – mas você chama isso de amor. Bem , isso é o que seu amor criou.


Com velocidade nauseante Garet empalou o joelho de sua mãe. Ela uivou de dor, o sangue acumulando-se aos seus pés. – Eu nunca te amei. Seu pai era um demônio e você sua semente. Como eu poderia amar isso? – apesar do ódio terrível que ela estava vomitando, eu estava reconhecidamente impressionado com o desafio e a força da Sra Tilaway. Após outro choque inicial de empalhamento, ela rapidamente se recompôs, um fogo próprio queimando atrás de seus olhos.


Um emaranhado de videiras explodiu do peito de Garet, envolvendo-se em torno de sua mãe como uma horda de sucuris. Eles deslizaram e se apertaram ao redor de seu corpo até angoli-la inteira. Observei atentamente enquanto as videira viajavam de volta para Garet, absorvendo sua mãe junto com eles.


“ É por isso que ele ainda está aqui” – Pensei comigo mesmo.


Quando eu trouxe a Sra Tilaway para floresta, não era minha intenção fazer dela um cordeiro de sacrifício, mas o destino é inevitável. Embora eu não chamasse de justiça, pelo menos não mais, eu também não chamaria de injusto o que Garet fez naquela noite.


Assim que Garet absorveu totalmente sua mãe, abafando seus gritos de tortura, seu corpo começou a se decompor. Carne e músculos se desprenderam do osso, saindo no chão antes de se dissolverem em nuvens cinzas. Quando voltou ao pó, Garet olhou brevemente para mim. Sua alma em paz, ele acenou com a cabeça silenciosamente enquanto desaparecia com o vento.

Eu não tinha certeza de como me sentir, ainda não tenho certeza. Moralidade e verdade são frustrantemente ambíguas e se existe um deus, sua ambivalência é reveladora. Este não foi um final feliz, mas eu concluí minha tarefa mesmo assim. Ao digitar o relatório resumido, fiz questão de incluir algumas omissões estratégicas que manteriam meus superiores longe de mim.


Os coaches da morte não são juiz, o júri ou o carrasco. Não somos advogados ou famílias nas arquibancadas assistindo depoimentos entre as respirações suspensas. Tudo o que fazemos é destrancar as portas do tribunal, e o que acontece depois disso, é para seu universo decidir.


Sinceramente, como a vida a morte também não é justa.


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