Você provavelmente já viu os Youtubers jogando ou algum meme no feed das mídias sociais.

Resumindo, o jogo é Survivor Multiplayer online onde até 10 jogadores são aleatoriamente designados para serem membros da tripulação ou impostores.

O objetivo, depende de qual lado do jogo você está, como tripulante, você realiza tarefas para salvar seus companheiros e impedir os impostores, enquanto o impostor vai sabotar a nave e matar o máximo de membros da tripulação o mais discretamente possível.

Tão simples quanto parece, o jogo é altamente viciante e recentemente ganhou popularidade no Youtube e na comunidade Twitch devido à quarentena da pandemia.

Espero que graças à sua popularidade, eu possa divulgar o que o jogo realmente é.

Porque embora a breve simulação seja uma diversão inofensiva, o que eu e outros seis membros astronautas enfrentamos não foi.

Por mais impossível que pareça, esta é a nossa história.





2016. Fomos informados de que ficaríamos na estação espacial por aproximadamente duas semanas, sem mais nem menos. Jansen recebeu suprimentos e pediu para estocar armazém para o vôo. Jansen e Angelo eram responsáveis pela manutenção e engenharia. Kollen, a única mulher do grupo, realizaria o trabalho de registro médicos, enquanto Hans, eu e Jonas éramos responsáveis pela navegação e comunicações.


Treinei toda minha vida para uma oportunidade como essa, então nem preciso dizer que estava mais do que animado para viajar para mais perto das estrelas.

Eu não conhecia nenhum dos outros tripulantes antes daquele dia e realmente não prestei muita atenção a nenhum deles para ser honesto. Estávamos todos aqui por motivos diferentes e isso não me preocupava desde que fizéssemos nosso trabalho.


O lançamento e a chegada à estação não foram nada especiais, nos reunimos com a antiga tripulação e começamos a repassar as tarefas que teríamos durante nossa missão.


- O cometa HP-456 está chegando para cruzar o limiar em aproximadamente três dias. Nossa principal preocupação é documentar e recuperar o máximo de dados possível, pois ainda não estão classificados. – Explicou Jansen. Ele se nomeou comandante com base em seus anos de experiência e nenhum de nós se opôs.


Depois que a velha tripulação foi embora, começamos a documentar todos os suprimentos que ainda estavam a bordo para ter certeza de que correspondia ao registro.

Juntei-me a Hans e Jansen perto da administração para verificar os registros e instrumentos. Foi aqui que percebemos nossa primeira discrepância.


- Por acaso alguém já acessou os registros antes? – Jansen perguntou enquanto revisava tudo.


- Não que eu saiba... por quê? – Eu perguntei, olhando para sua tela. Todo o banco de dados estava em branco.


- Isso é normal? – Jansen nos perguntou, mas eu honestamente não sabia. Hans apenas deu os ombros, não sendo muito capaz de falar muito bem em inglês.


- Se a missão deles já foi classificada, é normal sim. – uma voz interrompeu da porta de entrada. Kolleen estava lá nos ouvindo.


- Acho que devemos programar o sistema para fazer o mesmo por nós assim que voltarmos para casa – Decidiu Jansen, pensando um pouco nisso.


Me incomoda pensar que poderíamos facilmente ter caído em uma armadilha. Mas isso é o que acontece quando as pessoas aprendem a confiar uma nas outras.




Mais tarde naquele mesmo dia, Jonas e Jansen estavam se preparando para a primeira tarefa de manutenção pesada fora da estação.


- O uso de trajes é limitado, então precisamos nos mover rápido e ser eficientes. – Jonas me disse enquanto atitava as câmeras externas. Era meu trabalho observar os dois enquanto eles cruzavam a câmera de descompressão para os três painéis soltos. O trabalho não deveria levar mais do que quarente e cindo minutos de acordo com os cálculos de Jansen; E apenas forneceu uma janela de erro de 13%.


Apesar dos riscos, os dois homens vestiram os trajes e deixaram a relativa segurança da estação sem alarde.

Assisti-los cruzar o vazio do espaço, me lembrou de filmes antigos do jeito que os personagens pulavam alguns segundos. Fiz uma nota mental para adicionar as câmeras à lista de manutenção enquanto eu atitava o comunicador e instruía os dois a se moverem para o leste em direção aos painéis.


A estática foi à única resposta que recebi, mas pelo menos confirmou que eles me ouviam.

- Parece que eles deixaram este lugar no lixo- Disse uma voz à minha direita. Angelo sentou-se ao meu lado e soltou um suspiro antes de comentar – Acho que é isso que ganhamos por ser a equipe de limpeza.


Lembro que ia fazer uma piada mal-humorada, mas então uma explosão de barulho dos monitores chamou minha atenção.

A tela estava piscando dando tela preta enquanto eu pedia para que Jansen ou Jonas me respondessem.

- Está... vazamento.... Solicitando... Ar... Prepare... – A resposta veio em momentos esporádicos.

- Abra a exclusa de ar! Alguma coisa deu errado! – Kollen ordenou pelo interfone.

A tela ficou completamente estática depois disso, enquanto lutávamos para ajudar os dois a voltarem para dentro.

Angelo chegou primeiro, pressionando rapidamente na sequencia correta e recuando para permitir a pressurização.

O resto de nós assistiu Angelo entrar na próxima câmara para ajudar um dos dois homens dentro da estação, todos prendendo a respiração quando percebemos que ele estava voltando sozinho.

Tudo o que restou do outro astronauta foi à corda pendurada que havia sido rompida levando seu corpo em orbita para o espaço.

Uma vez lá dentro, o sobrevivente tirou o capacete e se revelou. Era Jansen.

- A pressão naquele cano quase acabou com nós dois. Descanse em paz Jon– Ele exclamou enquanto mostrava as marcas no lado esquerdo do traje onde o oxigênio havia explodido deixando uma bagunça derretida.

- Deixe-me dar uma olhada em você, venha comigo – Sugeriu Kollen. Os outros ajudaram-na a levantar Jansen em direção a enfermaria da estação.

Eu estava me concentrando no cordão de suspensão. E me perguntando por que a quebra parecia ter sido cortada precisamente e não rompida.



Depois de confirmar que Jansen não havia sofrido ferimentos graves, Kolleen recomendou que preparássemos uma refeição e também fizemos uma breve oração em nome do Jonas.

Embora nenhum de nós realmente o conhecesse, parecia a coisa apropriada a fazer.

Então, Angelo e eu preparamos uma pequena refeição e nos reunimos na cafeteria cerca de meia hora depois. Mesmo em meio a baixa gravidade, Kolleen conseguiu fazer um brinde ao nosso ex-colega falecido e comentou.

- Este incidente só nos mostra como todos nós precisamos ser diligentes nenhum de nos está a salvo dos erros que cometemos ou qualquer coisa que possa estar em mau funcionamento a bordo desta estação. Precisamos cuidar um do outro como uma familia.

Foi um bom aviso. O resto de nós comemorou e bebeu, usando a sala pressurizada para tirar nossos ternos e desfrutar da refeição. A torta de carne inglês, um clássico que eu nunca gostei muito, era a comida que Hans não perdeu tempo para preparar, cantando animadamente em sua própria língua enquanto comia.

- Isso parece bom, vou experimentar um pouco disso – Disse Jansen com uma risada enquanto arrancava um pouco do assado. Ele estava no meio do caminho para mastigar quando Kollen agarrou sua mão. Então percebemos que Hans não estava se agitando por causa da refeição. Era porque ele estava sufocando.

- Puta merda! – Kollen disse enquanto contornava a sala para verificar suas vias respiratórias. – Me passe aquela seringa, rápido! – Ela me ordenou. Eu estava observando enquanto os olhos de Hans saltaram lentamente de sua cabeça e seu rosto começou a inchar. Seria uma questão de segundos para que ele perdesse todo o oxigênio e quem sabe o que a pressurização faria.

Obedeci e passei a agulha para ela, e observei enquanto ela segurava  o homem que lutava por sua vida;. ela insistia para que ele permanecesse calmo. Mais fácil falar do que fazer, visto que ele sabia o que estava acontecendo com ele.

Usando a agulha, ela bateu a ponta afiada em seu pulmão para tentar abrir caminho alternativo para o ar entrar. Mas o resto de nós poderia dizer que era tarde demais. Ela estava apenas atrasando o inevitável.

Os suspiros de Hans era o único som na sala, exceto pelos gritos de Kollen para que ele continuasse vivo. Mas foi apenas uma tentativa vazia.

Momentos depois, a sala ficou em silencio novamente e todos nós estávamos nos sentindo muito desconfortáveis.

- A comida... estava envenenada – percebeu Jansen. Nenhum de nós reconheceu, mas sabíamos que ele estava certo. Alguém na equipe estava tentando matar os outros.

Naquela noite fiz o possível para dormir um pouco, apesar da tensão que permanecia entre nossa equipe. Fazia apenas um dia e 2 de nós já havia morrido. E é claro que eu sabia que o mesmo pânico que eu sentia provavelmente estava invadindo o coração dos outros. Em nossa missão, havia um impostor.

Eu observei minha porta enquanto fingia dormir, meio preocupado que eu fosse o próximo. E por um bom motivo. No meio da noite, ouvi um barulho no corredor e fui investigar.

As luzes estavam fracas, mas pude distinguir o cabelo ruivo característico de Kollen enquanto a seguia lentamente em direção à parte traseira da estação. Seria ela que estava sabotando para eliminar os membros restantes da tripulação? Fazia certo sentido, dada sua experiência em medicina. Mas com qual proposito?

Eu mantive minha própria pequena ferramenta  em minha mão quando entrei no armazém, preparado para o pior. 

Em vez disso, fiquei surpreso ao descobrir que Kollen e Angelo estavam lá esperando por mim.

- Feche a porta – Kollen ordenou.

Nós nos amontoamos perto da despensa de lixo eu disse:

- Você pretendia que eu a seguisse?

- HNão temos tempora pra isso, há um impostor entre nós – Disse a doutora com franqueza. Angelo balançou a cabeça severamente e eu sabia o que os dois estavam pensando.

- Jansen? – Eu sussurrei.

- Pode ter sido uma coincidência que o acidente aconteceu quando ele estava com Jonas... mas o envenenamento de comida não tem como. Ele é o único com acesso a dispensa. – Ela respondeu com firmeza.

Com as comunicações superficiais, estamos praticamente por conta própria aqui. – Comentou Angelo.

Mais duas semanas era uma sentença de morte garantida, eu percebi.

- O que você sugere? – Eu perguntei. Era obvio que não precisávamos debater o assunto. Achei que o interrogatório permitiria que Jansen confessasse e então poderíamos mantê-lo amarrado e preso. Mas nossa médica tinha outros planos.


- Precisamos elimina-lo antes que ele machuque o resto de nós. – Ela decidiu.

A sala ficou em silencio.


- Você quer dizer, mata-lo? – eu percebi severamente.

- Você quer acabar como Jonas ou Hans? – Ela perguntou.


Eu não tinha argumentos para isso. Então, em vez disso, concordamos que agora era a hora de agir.


Não consigo descrever corretamente a sensação que você tem quando percebe que precisa que matar uma pessoa, mesmo que ela seja sua inimiga. Isso fez meu estômago embrulhar. Honestamente, eu não tinha certeza se conseguiria continuar com isso. Mas Kolleen insistiu que precisávamos nos mover como uma unidade, para evitar que Jansen causasse mais danos.


Andamos juntos e silenciosamente pela estação até seus aposentos. Imaginei que os outros provavelmente também estavam pensando no que estava prestes a acontecer. Mas nenhum de nós estava realmente pronto.

Kolleen entrou primeiro, movendo-se para o lado esquerdo da forma adormecida de Jansen enquanto gesticulava para que Angelo pegasse sua faca. As mãos do homem tremiam. Eu brevemente me perguntei com o que Jansen poderia estar sonhando. Eu esperava que fosse bom em comparação com a morte violenta que ele enfrentou.

Eu rapidamente segurei seus braços e Kolleen segurou suas pernas. Jansen só teve tempo de acordar e gritar. Angelo o estrangulou e passou a faca profundamente contra seu pescoço. Por uma fração de segundo, tive a certeza de que ele não seria capaz de fazer isso. Quando a lâmina cruzou sua artéria principal, esperei ver a raiva ou ressentimento em seus olhos. Mas tudo que vi foi o medo. Ele sufocou com seu próprio sangue enquanto suas pernas e braços ficaram moles. Assim que ele foi confirmado morto por Kollen, atiramos seu corpo para fora da câmara de descompressão e avaliamos o que havia sobrado.


- Precisamos ver se podemos consertar esses sistemas para que possamos entrar em 

contato com o HQ – ela instruiu. Não ia ser um trabalho fácil, mas agora que o impostor se foi, pensei que teríamos um mar de rosas.

Em retrospecto, nunca deveria ter acreditado que estávamos seguros ou que Jensen trabalhava sozinho.


Na semana seguinte, assumi uma rotina e baixei a guarda. Nunca me ocorreu que Kolleen ou Angelo também pudessem ser uma ameaça. Mas após 10 dias de missão, tornou-se óbvio novamente que algo estava errado.


- Você desligou as câmeras na noite passada? – Eu perguntei enquanto verificava os sistemas. Eles não tinham agido de forma estranha desde que Jensen partiu, e agora, de repente, eu não conseguia ver o lado leste da estação. Isso me deixou inquieto novamente.


- Eu estava dormindo, então isso é duvidoso – Comentou Kolleen enquanto verificava por ela mesmo.

- Essa maldita estação precisa ser revisada – ela murmurou. Nossa tarefa naquele foi a despressurização da ala oeste. Insisti que todos fossem juntos.

Quando começamos a vedar a primeira câmara, Angelo percebeu minha inquietação e comentou sobre isso.

- Está tudo bem?

- Continue andando – insisti enquanto repassava na minha cabeça os eventos que levaram à morte de Jansen. Pequenos detalhes de como isso ocorreu passou pelo meu subconsciente. Como Kollen estava convenientemente no centro de comando quando as câmeras foram desligadas antes. Como ela sabia que a comida era venenosa. Mas Jansen estava prestes a comer também quando ela o interrompeu. Porque ele faria isso se estivesse tentando eliminar o resto de nós?

- Quando Kolleen abordou você pela primeira vez sobre o impostor, ela explicou como sabia que era Jansen? – Eu perguntei a ele enquanto corríamos para próxima sala. A medica não estava muito muito atrás de nós. Era agora ou nunca.

- Ela me disse que percebeu que o cordão de oxigênio do Jonas havia sido rompido e foi assim que ela soube... por quê?

Imediatamente fechei a câmara para Kollen e murmurei:

- Matamos a pessoa errada.

Quando a medica chegou a porta lacrada, seus olhos se arregalaram de medo e tentou gritar para chamar nossa atenção.

Angelo parecia em pânico enquanto eu lutava para explicar o que sabia.


- Ela é a única pessoa que parece estar um passo à frente do resto de nós. Como se ela soubesse o tempo todo o que esperar. Você pode chamar isso de coincidência? – Eu perguntei.


- Você está sendo paranoico – argumentou ele.

O alarme me disse que demoraria menos de um minuto para a câmara que Kolleen estava ficasse sem oxigênio e decidi testar essa teoria verificando os dados novamente.

- Olhe aqui. Os registros mostram que Kollen foi a última a reiniciar o sistema. Como isso pode ser possível? A menos que seja ela quem está tentando sabotar essa missão. - Eu disse a ele.


Angelo parecia pálido como um fantasma enquanto a contagem regressiva continuava. Esperei para ver ele salvaria a medica. Isso me diria se ele também estava envolvido neste esquema maluco.


Então, para minha surpresa, Kollen fez um ultimo esforço para se salvar.


“Sequencia de auto destruição iniciada. 3 minutos restantes” – o sistema de comunicação informou.

Olhei para a câmara selada e vi uma expressão de desafio em seu rosto. Ela ia matar todos nós.

- Rápido – Gritei correndo em direção à próxima escada para alcançar a cápsula de escape. Desta vez, Angelo não discutiu comigo.


Chegamos a pequena cápsula em menos de um minuto.

- Que diabos ela está pensando? – Angelo murmurou enquanto nos entravamos na capsula. No momento em que a pequena estação explodisse também significaria que estaríamos voando para a superfície. Eu preparei primeiro a detonação.


Segundos depois, estávamos voando em direção à atmosfera. Eu agarrei meu peito quando senti o calor e a gravidade nos atingirem e olhei para Angelo. Ele ainda parecia tão paranoico quanto antes.


- Você... Você a matou. – ele disse.


- Era ela ou toda a missão já estava comprometida desde o inicio. – argumentei.


- Não foi a melhor escolha – ele retrucou quando nossa cápsula de fuga balançou.

- Não tinha como saber – Eu argumentei em meio ao barulho agudo.

Angelo balançou a cabeça, não convencido com minhas palavras.


- Você estava lá quando Jonas saiu para consertar o casco. E você nem se serviu da comida quando Hans foi envenenado. Você jogou manipulou todos nós o tempo todo... – meu companheiro de equipe sussurrou.


- Não. Você está enganado. Não diga isso. – Eu disse a ele.

Momentos depois, nossa capsula caiu no meio do Oceano pacifico.


Quando a ajuda chegou, eu estava coberto de sangue. Os últimos momentos dessa queda são conhecidos apenas por mim e pelo homem morto.


Mas fui que que saí vivo de lá.


Eu mantive meu resumo para HQ curto e direto. Nossa missão foi um fracasso, a coisa toda foi classificada e fui dispensado do serviço.


É assim que minha história termina, com meus outros cinco membros da tripulação mortos e nenhuma prova da experiência, exceto minha própria palavra. E eu estava bem em aceitar isso, estava.

Até eu ver o jogo. Ele apareceu no meu feed em 2018 e no inicio prestei pouca atenção. Então, quando vi meu filho jogando uma partida no verão passado, não pude deixar de notar as semelhanças.


Isso tremia profundamente. Por que, você pode perguntar. A resposta é simples. Até agora não falei com ninguém sobre a sabotagem que sobrevivi a bordo daquela estação.


Então, como eles sabiam? Tenho lutado para encontrar uma resposta satisfatória para isso. E tudo que posso ter certeza é de uma coisa.


O que quer que tenha acontecido a bordo daquela pequena estação, não acabou. Ainda existe um impostor em algum lugar entre nós.


Apenas uma ferida



 Antes de me chamar de idiota, quero que imagine na sua própria pele. Não é raro encontrar pequenas marcas ou manchas que você não se lembra de onde ter se machucado. Nada importante, talvez uma marca do tamanho de um corte de papel no braço ou um hematoma na perna, coisas das qual ninguém repara. Simplesmente aparece lá.


Então eu não fiquei preocupado quando vi o sangue sob minhas unhas, qualquer coisa poderia ter causado a formação da pequena crosta em meu braço, e não doeu quando eu a coçei descuidadamente. A única razão pela qual notei foi porque não parava de sangrar e eu não queria manchar minha camisa.


Depois de quase meia hora enxugando o corte com um lenço de papel e não percebendo nenhum declínio no volume de sangue escorrendo, colei um band-aid, então continuei a viver minha vida.


Quando acordei na manhã seguinte, descobri que o curativo quase tinha encharcado- E sim, isso me assustou. Mas o que eu deveria fazer, ir ao médico e contar a ele sobre o pequeno arranhão no meu braço?


Então, fiz um curativo com mais grosso pela segunda vez - e levou horas para o sangue penetrar nele.


Limpei com álcool e cotonete e cobri novamente.


Realmente não teve nenhum efeito em mim. Era só um pequeno corte no meu braço e quase não pensei nisso depois do primeiro dia.


Acostumei-me a trocar os curativos pela manhã, ao meio-dia e à noite. Parei de limpá-lo, mas limpá-lo não parecia estar ajudando de qualquer maneira. Eventualmente, isso se tornou parte da minha rotina e sempre que eu saía de casa tinha um curativo no bolso.


Nas poucas vezes que alguém perguntou sobre isso, eu disse que era apenas um pequeno corte no meu braço e nem me lembrava como tinha feito isso; e eles entenderam, porque quem nunca passou por isso?


Acho que o problema realmente se resume à rotina. Tirei o curativo e coloquei um novo rápido, antes que qualquer coisa vazasse. Parei de realmente olhar para ele e quando o sangramento começou a diminuir algumas semanas depois, fiquei aliviado.


Um dia, quando eu estava no trabalho, fui interrompido no meio do processo de troca do curativo por um de meus colegas de trabalho, um homem chamado Mark.


- Jesus Cristo - disse ele - o que é isso? - Mark e eu éramos colegas de trabalho, amigáveis, mas não amigos.


- Oh, só uma pequena ferida. Eu nem sei como consegui isso - eu disse casualmente.


- Não sei o que é isso - disse ele - mas não é um pequeno corte.


A coisa estava na parte de trás do meu braço, um lugar onde não era muito acessível aos meus olhos sem a ajuda de um espelho, mas a expressão no rosto de Mark fez minha outra mão inconscientemente sentir o lugar que geralmente era coberto por um curativo. 


Onde esperava sentir uma crosta áspera e cicatrizante, não senti nada. A pele era lisa e esticada, até uma crista dura - e então meus dedos afundaram em um espaço no meu braço.


Senti membranas secas finas se rompendo sob a leve pressão à medida que afundavam mais, mas não senti dor.


Mark engasgou, me observando. Então ele começou a cheirar o ar como um lunático, 

- Oh Deus, que nojo - ele disse - Eu estava me perguntando o que era esse cheiro. Você precisa de um médico cara. 


Eu não respondi, a buraco em meu braço me deixou sem palavras. Pedi licença e fui para o banheiro.


Lá usei o espelho para ver melhor.


Não era tão ruim assim, a pele ao redor estava boa, apenas uma pequena ferida, mas fora isso, estava bem.


O buraco em si era pequeno, dentro a carne era preta, mas não havia sangue. Um cheiro fraco e rançoso emanava dele.


Substituí a bandagem e voltei ao trabalho. Foi apenas um pequeno buraco, uma pequena ferida, Mark estava exagerando.


Nas semanas seguintes, começou a ficar um pouco maior - e um pouco mais profundo, mas meu braço ainda estava bom. Nem doia quando enfiava meu dedo dentro dela, mas o cheiro estava se tornando um problema.


Eu podia ver as pessoas ao meu redor franzindo o rosto e me perguntando de onde vinha o fedor. No início, poucos perceberam que era eu, eu sempre tive uma aparência limpa, mas eventualmente sua força tornou a fonte mais fácil de identificar.


Alguém, provavelmente Mark, reclamou disso com meu chefe, que me chamou em seu escritório e me disse para resolver o problema.


Comecei a encobrir o fedor com diferentes substâncias. Tentei usar um cotonete embebido em álcool, mas não foi totalmente eficaz.


Certa vez, antes de uma reunião em que eu sabia que ficaria muito tempo perto de outras pessoas, recorri a usar um pedacinho de limão, mas nem isso parecia funcionar e fui repreendido uma segunda vez. Mas, em meu desespero, na manhã seguinte, realmente encontrei uma solução conveniente, enchi o buraco de pasta de dente.


O rótulo dizia que o bicarbonato de sódio era o ingrediente principal do e acho que é por isso que funcionou tão bem na absorção do odor. Portanto, todas as manhãs, quando me aprontava para o trabalho, eu apertava a pasta de dente na abertura até que ficasse plana igualmente ao meu braço antes de cobri-la.


Não houve mais reclamações sobre o cheiro no meu trabalho. Essa solução, no entanto, estava rapidamente se tornando cara. Parecia que todos os dias o buraco no meu braço estava absorvendo mais e mais, e quando comecei a usar um tubo por semana, eu sabia que era insustentável.


Então, finalmente decidi ver um médico.


Eu moro em uma cidade pequena e o médico que tenho desde que era criança é um cara pouco confiável, na melhor das hipóteses, auxiliando muito na disseminação de opioides em seu pequeno consultório do meio-oeste rural. Marquei uma consulta de qualquer maneira, porque nessa altura eu sabia que poderia ter um problema. Eu não estava delirando delirando.


Naquela manhã, não enchi o buraco no meu braço com pasta de dente para que fosse mais fácil para ele ver o interior.


O cheiro era terrível e tornou a viagem até lá muito desagradável.


Quando entrei na sala de espera e vi a senhora da recepção imediatamente fazer uma careta e me olhar de cima a baixo, soube que tinha feito a escolha certa ao ir ao médico. Se o cheiro tivesse atravessado a sala tão rápido, quem sabe os problemas que ele poderia me causar no dia-a-dia. Ela sorriu e me entregou a folha de assinatura, talvez não fosse tão ruim. Eu provavelmente estava apenas me assustando.


Todos na cidade sabiam dos tempos de espera no escritório do Dr. Murphy, eram tão lendários que as pessoas costumavam trazer grossos romances e discretamente deixá-los nas mesas da sala de espera, como se os tivessem terminado. Era uma forma bem típica do meio-oeste de reclamar.


Eu estava lá apenas um minuto antes de ser chamado de volta. A senhora da recepção mediu meus sinais vitais com um sorriso tenso e me mandou para a sala de exames, onde fui prontamente recebido pelo Dr. Murphy.


- Qual parece ser o problema hoje? - ele perguntou, mas seus olhos já haviam traçado para a gaze em volta do meu braço.


- Parece besteira - eu disse - mas tive um pequeno corte no braço, que nem sei onde consegui. Mas agora acho que está infeccionado - quando comecei a remover a gaze, o cheiro piorou impossivelmente - na verdade, tenho quase certeza de que está infeccionado.


O rosto do Dr. Murphy se contorceu, com repulsa pela coisa no meu braço. Foi muito pouco profissional.


Ele olhou para ele e depois para mim: - filho, você está se sentindo bem? - Ele perguntou.


O homem era desprezível e eu não gostei de ser tratado com condescendência.


- Estou me sentindo bem – eu disse, mesmo que o buraco em meu braço fosse profundo, seu diâmetro era pouco maior do que meu punho.


- Ok - disse o homem - vamos dar uma olhada.


A maneira como ele se moveu em minha direção foi hesitante, seu nojo estava claramente evidente em sua postura. Ele era um médico, pelo amor de Deus, ele era realmente incapaz de lidar com um ferimento tão pequeno? Provavelmente tinha algo a ver com o fato de que ele não podia simplesmente jogar uma receita em mim e me mandar embora.


- Coloque aqui em cima - disse ele, apontando para o braço da cadeira de exame. Obedeci com cautela e, quando o fiz, ele começou a cutucar meu braço com suas pequenas ferramentas afiadas.


Tive uma sensação de puxão e dilaceração, como se estivesse puxando um rolo de fita adesiva. O Dr. Murphy fez um barulho com a garganta quando olhei para o meu braço.


Ele havia retirado pedaços de carne do meu braço. Havia um cheiro enjoativo de menta e vi grumos de uma pasta de cor escura pingando no chão entre nós junto ao sangue e a carne. 

- O que você está fazendo? - Eu exigi, pulando da cadeira.


O Dr. Murphy, pálido e sem fala, me observou com olhos horrorizados - Acalme-se - ele implorou, mas como eu poderia ficar calmo quando podia olhar no espelho e ver os ligamentos do meu braço, a gordura amarela e até o osso branco e brilhante.


- Saia de perto de mim! - Eu gritei, agarrando minha gaze e recuperando a área.


Ele estava em pânico agora - você precisa ir para um hospital - disse ele - vou chamar uma ambulância.


- De jeito nenhum – interrompi - não vou sentar aqui e deixar você tirar o resto da minha pele!


Saí da sala de exame. Ele me chamou, mas eu já estava fora da porta.


A viagem para casa foi ainda pior do que a viagem de ida. O cheiro era horrível e quando abri as janelas, o ar frio do inverno enviou uma dor aguda pela carne recém-exposta.


Esse é o sistema médico que temos, apesar de todos os seus diplomas sofisticados, o homem só conseguiu piorar a situação.


Parei na drogaria para comprar mais pasta de dente, mas enquanto caminhava notei olhares de outros clientes e até mesmo de alguns funcionários. Eles sussurravam e apontavam de uma forma que provavelmente pretendia ser discreta, apontando para o lugar em meu braço onde a gaze não conseguia cobrir completamente.


Por que as pessoas não podem cuidar da própria vida, o cheiro não era tão ruim!


Comprei a pasta de dente rapidamente, com tanta pressa de sair de lá que nem esperei o troco.


Na segunda-feira seguinte, quando me preparei para o trabalho, descobri que nem mesmo um tubo inteiro de pasta de dente cobriria o cheiro. Graças ao Dr. Murphy, o resto da carne começou a descascar e finalmente afetou a mobilidade do meu braço. Eu mal conseguia mexer meus dedos mais. Pior, acho que algo pode ter acontecido quando eu o deixei exposto no caminho de volta do escritório - talvez até no escritório, o lugar dificilmente era esterilizado - eu não podia ter certeza, mas juro que alguns tipos de vermes brancos estavam começando a colonizar meu braço.


Eu sabia o que precisava fazer se quisesse manter meu emprego. O braço tinha que ser arrancado.


Eu chorei por isso. Sei que fazer sozinho parece uma má ideia, mas dificilmente confiaria no Dr. Murphy e é um fato que as amputações não são difíceis de realizar, especialmente porque não tenho qualquer sensação no braço.


Pense em todas as pessoas que tiveram seus braços serrados em campos de batalha, pelo menos ninguém estava me forçando a fazer isso.


Eu disse ao meu chefe que ficaria fora por alguns dias e ele não pareceu se importar muito. Espero que ele entenda por que vai valer a pena quando eu voltar.


A casa que ninguem construiu


As casas antigas têm um espírito próprio.

Normalmente não notamos durante o dia quando o sol está quente e as janelas estão abertas. A brisa fresca traz aromas familiares do jardim e das vinhas de jasmim floridas serpenteando por entre as pedras em ruínas. Sempre tem coisas demais acontecendo em minha casa durante a noite para perceber, como minha mãe se movimentando pela cozinha ou meus dois irmãos brigando por causa de seus jogos na sala de estar. De algum lugar lá em cima ecoa as gargalhadas do meu tio junto com as risadas padronizadas de seus programas de TV. E, junto a tudo isso, tem o jazz tocado com na velha vitrola no recinto do meu pai, abafado e distante em torno das muitas voltas e reviravoltas dos corredores estreitos.


A casa é confortável, aconchegante e segura até que todos tenham ido para a cama e a casa comece a respirar. Quando as sombras se movimentam nos cômodos quietos, e o ar estagnado se arrasta pesado com um sabor desconhecido. As luzes nunca são suficientes para encher a sala, não importa quantos interruptores estejam ligados. E o silêncio nunca é totalmente silencioso: uma sensação deslumbrante de vazio ainda mais suave do que as tábuas do assoalho rangendo ou o farfalhar das venezianas de madeira contra o vento. Há algo mais, algo mais profundo, quase como se alguém descobrisse como tocar o som do silêncio para encobrir algo que não deveríamos ouvir.


Existe uma regra oculta em nossa casa que nos mantém calados à noite. Às vezes, nós nos pegamos nos corredores a caminho do banheiro ou quando estamos mexendo na geladeira procurando por lanches. Nos cumprimentamos com um aceno de cabeça ou um gesto, ou às vezes com um sussurro, se necessário, mas nunca falaremos em voz alta. Mesmo quando crianças, meus irmãos e eu nunca quebramos o silêncio à noite. Sempre foi desrespeitoso, como gritar na igreja, como se estivéssemos interrompendo algo sagrado que já estava lá antes de nascermos e que permaneceria naquelas paredes muito depois de partirmos.


- A fiação elétrica antiga pode ter esse efeito -  disse meu pai certa vez. Ele nunca elaborou exatamente o que "aquele efeito" era, ou nos deu uma explicação de como uma caixa de fusíveis com defeito poderia parecer como se algo no escuro estivesse ouvindo você respirar. 

- Eu meio que gosto disso, sabe? Me faz sentir confortável, como se a casa estivesse me protegendo durante a silenciosa noite. ”


- Tem a ver com o sistema de ventilação - disse minha mãe. - Eu também percebi quando mudei para cá, mas, honestamente, eu quase não noto mais nada. Apenas deixe uma janela aberta se isso estiver incomodando você.


Não sabia como dizer a ela que a casa não queria as janelas abertas à noite. Era como se eu empurrasse um dos meus irmãos para fora do sofá e imediatamente lhe dado as costas. Eu não teria que ver seu rosto para saber que ele estava com raiva. Ele não precisaria gritar ou me bater de volta. Eu apenas sentiria a raiva se agitando atrás de mim no ar, uma coisa quase que inconscientemente, me encararia até que eu me desculpasse e devolvesse seu assento. Era assim com a casa, sufocando-me com sua raiva até que fechasse a janela e a deixasse se acalmar.


- Ninguém constrói uma casa para se sentir assim. Se você está me perguntando por que essa casa é assim, é porque ninguém nunca construiu esta casa, ela simplesmente cresceu assim.


Gostei mais da explicação do meu tio, embora nunca a tenha entendido totalmente. Meus pais estavam sempre ocupados com alguma coisa, e meus irmãos nunca me deixariam esquecer isso se eu dissesse que estava com medo. Meu tio gostou da minha visita, porque ninguém mais o fez. Suas pernas não funcionavam mais e ele nunca se levantava, exceto para se arrastar até o banheiro. Eu me sentava na ponta da cama depois de trazer comida para ele e o ouvia enquanto ele me contava sobre os sentimentos que eu não conseguia descrever.


- Não me venha com essa cara. As pessoas agem como se eu estivesse quebrado só porque não ando mais por aí, mas estar dentro de casa o tempo todo deu a mim e à casa a chance de nos conhecermos. Ela me contou como as pessoas às vezes vêm e cortam árvores e constroem casas, e como a terra é prejudicada por isso. Como eu sei? Porque assim que essas pessoas se levantarem e forem embora, a terra vai tentar se curar. Os jardins começarão a tomar conta da casa, o mato crescerá alto, os animais começarão a pular cercas e, com tempo suficiente, você nunca saberá que houve gente lá.

É a mesma coisa com esta casa, só que ao contrário. A terra aqui foi ferida por algo muito tempo atrás, ferida por algo que estava aqui antes mesmo dos colonizadores chegarem. E então a terra fez o que sempre faz, ela cresce e se cura. Algumas feridas são tão profundas que nunca cicatrizam direito, então a terra tem que crescer como uma casa para prender a ferida dentro e nunca deixá-la ir. 


- Você só está dizendo isso porque está pensando em suas pernas - eu disse a ele. - Como é que uma casa vai crescer do chão, com todos os fios, canos e coisas assim?


Meu tio riu, a risada profunda e familiar que era tão diferente daquele lugar que poderia muito bem vir da própria casa. 

- A casa não cresceu do zero, com tapetes, papel de parede e todo o resto. O formato cresceu, inchando como uma bolha na terra. E então as pessoas chegaram e devem ter pensado que era uma casa abandonada que alguém antes deles construiu. Então, eles reformaram e tornaram confortável para as pessoas viverem - o mais confortável possível, considerando de onde veio - e agora é nossa vez de cuidar do lugar. 


- E a dor que a fez crescer? Para onde foi?


- Você não estaria aqui perguntando se já não soubesse. Você pode não ouvir isso em muitas músicas, mas existem algumas mágoas que nunca somem. Portanto, você também pode torná-la amigável, porque ela estará lá até o fim da sua vida. Se a casa decidiu que não quer que estejamos aqui, então você não vai precisar ouvir isso de um velho como eu.


Eu não teria me lembrado dessas palavras se elas estivessem erradas. Acho que minha casa realmente se importava com meu tio. E meu tio deve ter se importado, porque mesmo quando piorou não deixou meus pais o levarem ao hospital. Ele nunca levantou a voz, mas deu o aviso de que haveria raiva tentassem tira-lo de casa. Lembro-me de ter pensado na época como ele disse isso estranho, que 'haveria raiva', e não que ele ficaria com raiva. Mas a única coisa que parecia importar era que ele estava ficando parado e meus pais estavam muito preocupados. E assim como a casa, eles nunca me disseram exatamente o que estava errado.


Não dormi muito naquela noite e estava acordado quando ouvi meu tio ofegando por ar. Fiquei surpreso que meu primeiro pensamento foi ficar com raiva dele por fazer tanto barulho quando a casa queria ficar quieta. O som do meu tio estava ficando mais desesperador, porém, e não demorou muito para eu acordar meus pais. Tudo ficou alto depois disso: meus irmãos gritando, meus pais discutindo e até mesmo o uivo de uma ambulância ecoando pela nossa rua. Acho que meu tio teria tentado lutar contra eles se ainda estivesse acordado quando o carregaram. Sei que ele teria feito mais para nos convencer se pudesse, para nos fazer acreditar que haveria raiva quando ele se fosse.


Meus pais foram junto a ambulância, e só eu e meus irmãos sabíamos o que aconteceu. Já estávamos com medo e ansiosos pelo nosso tio. Não teria demorado muito para nos irritar ou nos fazer imaginar demônios saindo da escuridão. Meus irmãos estavam tão preocupados com o que aconteceu que não paravam de falar, no entanto - sobre todos os vizinhos parados em sua varanda, sobre as máquinas de bip que os médicos carregavam, sobre o que iria acontecer com meu tio. Para a frente e para trás, cada vez mais alto, depois gritando novamente quando um deles dizia que meu tio ia morrer.


A gritaria não parou, nem mesmo quando os dois finalmente calaram a boca. Ouvimos sons exatamente como meus irmãos, o som de correria pelos corredores de cima. As vozes ameaçavam umas às outras com atos tão cruéis e violentos que me faziam estremecer de agonia fantasmagórica. Meus irmãos pareciam não entender o que estava acontecendo e ficavam cada vez mais zangados um com o outro, ameaçando-se de verdade enquanto acusavam o outro de tentar assustá-los. Então um deles colocou as mãos em volta do pescoço do outro, e o outro o fez da mesma maneira, e ambos estavam se enforcando e o rosto em chamas enquanto cada precioso fôlego era jogado fora em um rosnado de ódio um pelo outro.


Eu involuntariamente prendi a respiração com a tensão enquanto tentava separá-los, e foi então que percebi que algo ao nosso lado ainda estava respirando. Quente, pesado e furioso, a força crescendo a cada respiração desencarnada. O ar se arrastava sobre nós com tanta força que nos puxava escada acima, a explosão de cada puxão rítmico chicoteando as cortinas, torcendo os tapetes e arrancando os retratos da parede. Arfando quente, úmido e insaciável, e o tempo todo meus irmãos não faziam nada além de lutar entre si.


Os gritos e ameaças cruéis encheram o ar com mais força aqui em cima, acompanhados pelas vozes de outras pessoas que eu não reconheci. Homens e mulheres de todas as idades, suas vozes cheias de um ódio e raiva desprezível, como se só nós fôssemos a causa de todos os males e misérias em suas vidas. Cuspindo, rugindo de ódio, desejando nossa morte e gritando conosco entre cada respiração infernal. Mais difíceis de suportar eram as vozes das crianças, lamentando, implorando e gritando conosco com tanta repulsa e desgosto. O sofrimento deles me fez sentir tão culpado que naquele momento eu estava absolutamente convencido de que merecia qualquer punição que estava prestes a receber.


Um dos meus irmãos havia parado de lutar agora. Ele estava inerte no chão com as mãos dos outros ainda presas ao pescoço, os dois rostos quase irreconhecíveis para a selvageria de seu esforço. O calor e a pressão estavam diminuindo ao nosso redor, no entanto, e o vento estava recuando pelas rachaduras no assoalho e nas paredes. Agora, de repente, o ar tornou-se cortante e frio à medida que cada janela e porta era arremessada contra as dobradiças, encaixando-se no lugar como uma fratura de osso. Eu soube imediatamente que a casa estava me dando a chance de deixá-la definhar em sua dor e seu ódio. Não posso explicar como, mas sabia que estaria seguro se corresse agora, deixando meus irmãos com o destino que lhes foi dado pelas mãos dos outros.


Passei por uma das portas abertas que me foram oferecidas, mas não para sair. Em vez disso, fui para o quarto do meu tio, subindo em sua cama e puxando o cobertor que ainda estava úmido de suor. Cobri-me naquele cobertor e chorei até que o último eco assustador de raiva se acalmasse e depois se transformasse em algo mais profundo, aquele som de gargalhadas suave que sempre vinha como se viesse da própria casa.


Há um espírito na casa que ninguém construiu. E com ela carrega uma dor angustiante e tão antiga que acho que nunca vai sarar. Mas conheço esse espírito pelo nome e o chamo de meu tio. Eu disse a ele que está tudo bem se ele nunca for embora, porque eu nunca vou deixá-lo também. À noite, mantenho as janelas fechadas e fico muito quieto, e juntos encontramos a paz. E algum dia outro cuidará de sua dor, e eles saberão que sou eu, e eu nunca estarei sozinho.


Nunca Jogue o Jogo das facas!

Ele sabe o que você odeia. E odeia o que você ama.


Eu originalmente ouvi sobre “Saco das facas” em um dos meus textos de literatura medieval. A aula parecia interessante dentro da lista de matérias opcionais daquele semestre, mas duas semanas depois eu já estava desejando ter feito outra rodada de poesia ou escrita criativa.


Parte do arrependimento era o professor, que estava cronicamente seco e enfadonho enquanto dava uma palestra decorada que obviamente regurgitava a mesma coisa nos últimos vinte anos. Mas a maior dificuldade era a própria linguagem. Era tão arcaico e difícil de ler, e eu já sabia que era péssimo em línguas estrangeiras. Alguns dos livros até foram “modernizados”, mas a maioria estava repleta de notas de rodapé em minúsculos parágrafos de blocos mais longos do que o texto que estavam explicando. E, claro, quando finalmente vi algo que parecia legal, não havia notas a serem encontradas.


Foi no meio de um fragmento de história sobre uma aldeia que caiu sob uma maldição de alguma forma. As pessoas estavam ficando loucas, ou suas vacas estavam morrendo, ou algo assim. A xilogravura que a acompanha fazia com que parecesse ruim. Ainda assim, era meio chato e idiota, e eu estava prestes a desistir da leitura quando uma frase chamou minha atenção. “Saco dos valentes”.


Como eu disse, não havia nota de rodapé e, quando fui para o índice, o termo não estava listado. Procurei na internet, mas também não havia nada sobre isso. Meu interesse já estava diminuindo, mas então uma ideia me ocorreu.


O professor da turma sempre dizia às pessoas para perguntarem se tínhamos alguma dúvida, seja depois da aula ou durante o horário de expediente. De jeito nenhum eu faria isso, mas talvez se eu enviasse um e-mail rápido perguntando sobre isso, ele pensaria que eu me importava com sua aula idiota. Eu não era um trapaceiro, mas não me importava nenhum pouco em parecer um fracasso na interpretação de uma redação. Então, olhei para o e-mail do corpo docente e perguntei o que o termo significava antes de guardar meus livros e ir para a festa de Jeff.


Eu literalmente não pensei sobre isso novamente naquela noite. A festa em si foi uma droga, era um daqueles negócios em que havia gente demais para ser divertido, então meu pequeno círculo social acabou saindo juntos, embora fosse para casa dos meus amigos Jeff e sua namorada Victoria. Os dois eram alunos de pós-graduação e Jeff estava de mau humor porque sua tese foi rejeitada. Isso fez com que eu e os outros de nosso grupo nos revezássemos reclamando de pessoas que estavam sendo idiotas. Chefes que eram injustos, namorados e namoradas que eram infiéis ou controladores, pais e irmãos que não entendiam nossas dificuldades individuais e coletivas. Estávamos todos bêbados e meio sérios enquanto nos revezávamos tentando melodramaticamente superar as desgraças um do outro e, no final da noite, estávamos todos tão exaustos de tanto rir que acabei caindo de sono no chão. Quando voltei para o meu dormitório na manhã seguinte, vi que tinha um e-mail.


Saudações, Sr. Holden!


Que bom ver você se interessando pelas peculiaridades de nossos amigos medievais de um passado distante! A frase que você referiu é bastante interessante! Refere-se a um obscuro costume de pregar peças que era comum em partes da Europa por um tempo. Foi assim:


Um grupo de amigos ou desocupados com ideias semelhantes se reunia e colocava nomes ou devido às taxas extremamente baixas de alfabetização, marcas ou objetos de identificação pessoal em um saco ou sacola. De qualquer forma, a ideia era que você estava identificando um alvo para a pegadinha - geralmente um inimigo. Depois que todos colocaram algo que representasse alguém dentro do saco, todos retiraram uma. Seus próprios excluídos. É claro.


Digo "é claro" porque o propósito do saco das facas, era assediar ou até mesmo machucar alguém que você odiava, sem que isso estivesse vinculado a você pessoalmente. Essas eram comunidades tipicamente pequenas onde quase todos se conheciam, e o risco de ser visto e reconhecido ou de quebrar a cerca de alguém ou envenenar sua alimentação era significativamente maior do que seria hoje. Se alguém visse um inimigo espreitando em torno de sua propriedade e de repente sua vaca fugisse ou suas galinhas morressem... Bem, seria imediatamente suspeito. O saco dos valentes fornecia uma medida de proteção contra tal escrutínio, e geralmente era limitado a pequenas pegadinhas que não levantariam muita ira, embora sempre houvesse exceções.


Depois que o brincalhão terminava algum ato contra o alvo, ele voltava para o saco (geralmente escondido em um lugar que todos no jogo conheciam) e colocava de volta amarrado em uma faca o item que retiraram no começo. Essa “faca” simbolizava que o “castigo” ao inimigo de seu amigo foi realizado. O jogo não acabava até que todos os gravetos e artefatos estivessem de volta no saco das facas. Acredito que houve variações nas regras ao longo dos anos, mas geralmente nenhum “vencedor” era especificado. Suponho que sua vingança indireta contra aqueles que odiavam era recompensa suficiente.


Pensei em responder, mas decidi não fazer isso. Foi legal da parte dele responder tão rápido, mas havia uma diferença entre ganhar alguns pontos e se tornar amigo de correspondência de um super nerd de literatura. Ri da ideia, fechei meu notebook e me preparei para trabalhar.


Uma semana depois, mencionei o Saco de Facas para Jeff e Victoria durante o jantar. Eu mencionei isso como uma história engraçada, mas quanto mais eu descrevia o e-mail, mais interessados ​​eles ficavam. Antes que eu percebesse, eles ligaram para Paul e Emily (outro casal de amigos que, com base na conversa anterior na festa, tinham objetivos claros para lidar com alguém). Eles trouxeram seu amigo Will, que acabara de ser despedido de um estágio por fumar maconha no estacionamento.


Tentei pisar no freio antes que as pessoas chegassem e entrássemos em algum jogo estranho, mas Victoria não estava ouvindo. Ela disse que foi a melhor ideia que ela ouviu em meses. Que parecia legal, divertido e muito satisfatório. Mas o ponto é quem sem mim não teria participantes o suficiente.


Piscando para mim, ela se virou e sorriu. “Vai ser como aquele filme de Hitchcock, O estranho no Trem, o que acha?"


Três dias depois, eu estava riscando as palavras “Vadia safada” no capô do carro de uma estranha.


Tínhamos usado uma mochila escolar e cartões de índice, mas acho que funcionou bem o suficiente. Eu tirei a ex-melhor amiga de Emily, que aparentemente dormiu com o namorado dela do colégio. Eu queria perguntar se Paul (o atual namorado de Emily) estava bem com ela ainda estando tão presa a um relacionamento passado, mas eu senti que não iria acabar bem, então deixei pra lá. Em vez disso, obedientemente dobrei meu bilhete e o enfiei no bolso, planejando esperar até mais tarde para me preocupar se continuaria com uma pegadinha ou não.


Esquecer o pensamento não foi tão fácil. Desde o momento em que consegui o nome e o endereço, fiquei preocupado em fazer algo com a mulher. Não é como se eu fosse um cara mesquinho ou algo assim, mas era apenas idiota como parece, parecia que eu tinha feito uma promessa que tinha que cumprir.


Voltei para a casa de Jeff depois que terminei e encontrei a mochila pendurada no galpão de ferramentas. Abaixo dele, havia três facas de manteiga com faixas de borracha ao redor delas. Fofa. Imaginei que os outros três já haviam enchido o saco e, quando coloquei o meu, vi que estava certo, já haviam facas na mochila. Eu me perguntei quem havia recebido meu pequeno pedido especial e o que eles fizeram.


Eu descobri logo.


- Jeff... J-Jeff está morto.


Eu apertei o telefone com mais força enquanto o chão parecia balançar sob mim.


- O que? O que você quer dizer?


A voz de Victoria estava alta e quebradiça quando ela falou novamente.


- Quero dizer que ele está morto, porra. Ele tirou seu cara no Jogo... Bryan Davis era o nome que você colocou no saco das facas, certo?


Eu caí no sofá, mal conseguindo respirar.


Bryan Davis era o nome que coloquei no jogo. Apenas um idiota viciado com quem eu morava quando era calouro. Ele fugiu no primeiro trimestre e roubou meu notebook. Eu nunca poderia provar isso, mas sabia que foi ele. E ele é um morador da cidade, então eu ainda via o filho da mãe por aí algumas vezes.

Eu pisquei, voltando para a conversa.


- Mas como... Como Jeff está morto?


- Ele aparentemente tentou tirar aquele cara da estrada. O Bryan realmente se ferrou... Eles disseram que está em estado grave. Mas Jeff também saiu da estrada. Ele bateu em uma árvore... E não sobreviveu.


A última palavra se transformou em um gemido baixo. Eu não sabia o que dizer. Jeff nunca iria tão longe assim. Não havia um resquício de maldade nele.


O telefone clicou e ficou mudo. Tentei ligar para ela, mas não houve resposta. Acontece que havia uma boa razão para ela não me atender.


Ela deu um tiro na própria cabeça.


Nos últimos cinco dias, duas das outras três pessoas do jogo, também apareceram mortas. Emily também cometeu suicídio e Will foi baleado enquanto tentava incendiar uma loja de ferragens. Quanto ao Paul? Ele está foragido depois de um ataque qualificado, onde ele supostamente quebrou as pernas de um velho com um taco de baseball.


Quanto mim? Atualmente sou uma “pessoa suspeita” em um caso de estupro. Não porque eu tenha qualquer ligação com a vítima ou porque a mulher tenha sido capaz de dar uma descrição clara de alguém, mas porque meu carro foi visto na vizinhança na noite em que aconteceu. Um homem igual à minha descrição foi avistado por um casal, e de acordo com suas denuncias. O homem estava aparentemente gravando as palavras “Vadia Safada” no carro da vítima. Não sou supersticioso, mas também não sou burro. Isso não era apenas coincidência, e a única coisa que conectava tudo isso era aquele jogo idiota.


Um jogo que aprendi com meu professor.


Mandei vários e-mails, mas não obtive resposta. Após dois dias de espera, liguei para seu escritório e deixei uma mensagem de voz. Para minha surpresa, recebi uma ligação de volta naquela tarde.


- Sr. Browning?


- Um sim. Professor Miller?


- Sim, sou eu. Acabei de ouvir seu recado de voz. Você parecia muito apreensivo, mas eu não consegui entender o que você estava falando. Você mencionou algo sobre a leitura?


Eu respirei fundo e tentei manter minha voz calma. - Sim, como eu disse antes. Estava em sua aula no mês passado. E li a história da vila amaldiçoada. Aquilo que você me explicou no e-mail sobre o “jogo das facas”.


Houve uma longa pausa e pude ouvir o passar das páginas enquanto ele falava novamente.


- Eu... eu não tenho certeza do que você está falando. Eu sei a história que você está se referindo, mas ... só um momento. Ah sim. Acho que encontrei a linha. Saxo dos valentes, certo? "


- Hum, se você diz. Você chamou de saco de facas no e-mail, assim como eu. Mas você tem que saber mais do que você... ”


- Espera? Que e-mail?


Eu fiz uma careta. Ele estava bêbado ou algo assim? Eu não tinha tempo para isso. Se ele não me desse respostas diretas, ele poderia falar com a porra da polícia sobre isso.


- Sim, o e-mail que você me respondeu quando perguntei sobre isso.


Outra pausa.


- Sr. Browning, não te enviei um e-mail. Eu não uso o e-mail escolar, para ser honesto. Os alunos ficavam enviando spans e pregando pegadinhas. A secretária do departamento imprimirá missivas críticas de minha conta, mas não li nada seu ou de qualquer outro aluno em... bem, provavelmente há mais de um ano. - O homem continuou hesitante. - Isso é parte do que eu queria abordar. Você parecia, tanto no correio de voz quanto nesta conversa, ter a impressão de que já conversamos antes, mas posso garantir que  não fora dos momentos em que poderia ter chamado você em sala de aula. Quanto a esta frase do livro... bem, é interessante, mas dada a sua aparente chateação, certamente não é um tópico em que você deva se concentrar no momento. Talvez você deva falar com alguém se estiver se sentindo muito ansioso ou confuso.


Eu me levantei e comecei a andar. - Isso é problema. Eu tenho o e-mail. Eu tenho provas.


- Filho, não duvido que tenha, mas posso dizer que não foi de mim. Talvez você tenha me confundido com outra pessoa ou talvez minha conta tenha sido... invadida? Hackeada? Eu não sei.


Eu queria gritar com ele, mas não tinha certeza se ele estava mentindo. Não era impossível que outra pessoa tivesse entrado em sua conta ou alterado seu endereço de alguma forma. Mas por que? E o que isso tinha a ver com o estúpido jogo do saco de facas?


- Olha... Eu realmente tenho que ir.


- Não! Por favor professor. Apenas... Ok, eu vou ficar calmo. apenas me diga o que você sabe sobre o jogo do saco de facas.


Eu podia ouvi-lo soltar um longo suspiro do outro lado da linha. - Muito bem, mas se você ficar chateado de novo, vou ter que sair.


- Okay, pode ser.


- OK. Como eu disse, não é “saco das facas”. E sim “Saxo dos patifes”. Você confundiu a tradução de “Seax of knaves” com “Sack of knifes”. Saxo era um nome em inglês antigo para um tipo de faca, o que torna seu erro um tanto engraçado, suponho. Saxo eram ferramentas de lâmina fixa de um gume que às vezes eram usadas como armas em caso de apuros, principalmente entre os saxões, cujo nome vem da mesma palavra. Quanto a 'patife', é uma palavra antiga para um trapaceiro ou um canalha. Às vezes, um ladrão ou  de acordo com as superstições, algo pior.


- Pior como o quê? O que isso significa no livro? Naquela aldeia?


-Eu... Eu não sei se me sinto confortável mergulhando em velhas superstições com um homem que está claramente angustiado.


- Por favor, senhor. Eu preciso saber disso. E então eu vou deixar você ir.


Ele começou novamente com a respiração instável.


- Primeiramente, O Saxo dos Patifes não era um jogo. E sim um ritual. Na região em que se originou, “o patife” era uma gíria para um espirito ou demônio. Um espírito maligno. No ritual, você se tornava a essência de “uma faca para os demônios”, você estava agiria maldosamente contra alguém que nunca o prejudicou. Espalhando discórdia e sofrimento. Parte do efeito prático é claro, era uma maneira ligeiramente inteligente de tentar se vingar dos outros indiretamente. Mas a consequência mais profunda era que supostamente que você estaria se ligando a esse Outro. E sabendo ou não, você era parte da oferta a ser feita. O homem pigarreou. Há histórias disso ao longo da história, é claro. Lugares onde as pessoas ficaram estranhas, ou loucas quando ligavam-se um ao outro. Aldeias e cidades inteiras foram perdidas para ele, mesmo nos tempos mais modernos. Hoje chamamos isso de doença mental. Histeria em massa. E... bem, tenho certeza de que está certo. - Ele riu desconfortavelmente. - Se posso perguntar, por que você está tão fascinado por isso? Você não experimentou invocar “o outro” sozinho, não é?


Minha visão começou a nadar quando acenei para uma sala vazia.


- Nós... nós fizemos. Nós pensamos que seria engraçado e agora meus amigos estão mortos e...


Ele murmurou algo e disse mais claramente:


- Não entre em contato comigo novamente.


Eu ouvi um bip quando ele desligou. Olhando para o meu telefone, eu repassei na minha cabeça o que ele murmurou antes de desligar, tentando dar sentido a isso.

TENTE. FIQUE SE VOCÊ GOSTAR.



Algo está mudando as pessoas no meu prédio.


Não sei como descrever melhor os fenômenos atuais do que explicar, da maneira mais simples possível, que eles voltam diferentes . Quando eles dizem, seus olhos nunca se movem, nunca se afastam por um segundo, penetrantes orbes de sombra que parecem conhecer algum segredo profundo que eu nunca poderia entender. Eles parecem estar todos conectados, de alguma forma, de uma forma inexplicável, como se estivessem todos envolvidos em alguma piada cruel que eu não poderia participar.


A menos que eu entre no elevador, é claro.


Menciono isso agora, não porque tenha certeza no momento em que escrevo, mas porque suspeito que surgiram nas últimas semanas, coisas que cresceram em mim e que devem ser descritas aqui. Estou escrevendo isso porque estou com medo. Eu posso me ouvir falando comigo mesmo agora, aquele carrilhão chamando ao longe no corredor.


Preciso que alguém saiba o que aconteceu comigo se eu voltar diferente .


Veja, tendo voltado meus olhos para esta aparição, e tentando o meu melhor para descobrir a fonte dessa irregularidade, eu passei a acreditar que é o elevador que os muda, o tipo com um desenho em tesoura fundida em ferro, que geme e grita quando chega a um fechamento gradual a cada elevação.


Há algo nele que não gosto, algo de que não gosto desde que me mudei para este lugar com minha namorada, Sarah, há quase dois meses. É algo difícil de explicar como algo mais do que um sentimento penetrante , uma sensação interna de ameaça em relação a este elevador em particular. Parece ter uma aura anormal, uma deliciosa, quase alegre, quando aquele portão de metal se expande, dando as boas-vindas a você.


CONVIDATIVO.


Acho que agora seria um bom momento para informá-lo de que nunca pus os pés naquela engenhoca, nem uma vez, nem mesmo quando o gerente incrivelmente agradável, uma mulher loira de óculos e cereja em seus trinta e poucos anos, me acompanharam pela antiga estrutura e me convidaram para entrar. Tenho um medo terrível de altura e, mais ainda, de espaços apertados. Um olhar para aquelas armações de metal retorcidas, aquelas desenhadas nas paredes, aquele sol às vezes tremeluzente de uma luz vermelha lá em cima, bastou para eu recusar, educadamente, e sempre subir os sete lances de escada até nosso apartamento.


Deixe-me falar sobre o prédio. É um prédio antigo, de tijolos amarelos, construído na década de 1910, originalmente construído como um hotel, com uma espécie de hera que roía grande parte de sua face. É lindo, cheio de carisma e personalidade de uma forma que nada construído em tempos mais modernos poderia ser. As luzes no saguão e nos corredores estão sempre acesas, um brilho rosado cativante, lançando o interior com um brilho alegre, sem nenhuma sombra. Foi construída à mão, ao longo de muitos anos, numa criação artesanal.


Um trabalho de arte.


Acho que foi isso que nos atraiu aqui, a sensação de luz que nos puxava para dentro e o calor que emanava do lugar.


Eu me senti em casa no minuto em que chegamos.


Casa.


Casa de uma maneira que nunca havíamos sentido. Uma lareira tostada, um chocolate bem quente e um bom livro, e de alguma forma, em momentos diferentes, o sentimento de companhia, estarmos juntos agradavelmente em um bar acolhedor, um lugar onde todos te conheciam e sempre o conheceriam, onde as torneiras continuavam a correr , e às vezes, porque todo mundo gostava de você, as bebidas ficavam por conta da casa.


Havia algo mais também, mais do que o gerente insuportavelmente gentil, seu cabelo ruivo ondulado e olhos invulgarmente invasivos.


Foi a qualidade e os termos do contrato.


Há meses procurávamos um lugar na cidade, vasculhando mais de cem residências diferentes, e nunca encontramos uma com uma oportunidade como essa. Um aluguel mês a mês, várias centenas de dólares a menos do que qualquer outra coisa de qualidade e qualidade semelhantes nas redondezas. Parecia bom demais para ser verdade e, depois de revisar a folha de contrato duas vezes e não encontrar o menor indício de desonestidade por parte do gerente, decidimos que seria uma tolice deixar passar uma oportunidade como essa.


Se não gostássemos, é claro que sempre podíamos sair.


Esse foi o nosso entendimento na época.


O primeiro mês passou sem surpresas.


Estávamos nos acostumando-se com o bairro, nossos novos empregos na cidade, cozinhando em uma pequena  cozinha sem microondas.


Percebemos, já então, que os vizinhos eram um pouco estranhos. Seus sorrisos eram muito largos e alongavam-se em seus rostos. Seus olhos não pareciam piscar com freqüência suficiente e eles pararam, parados, principalmente quando os cumprimentávamos nos corredores e nas escadas.


Mais de uma vez, tive a noção bizarra de que eles permaneceram assim, mesmo depois que saímos, parados, imóveis, mesmo depois que tínhamos ido embora. Eu descartei isso como nada, porque é claro que era. Coisas assim não existiam e, se existissem, não existiriam em alguma parte isolada do país? Alguma província rural onde o fantasma de uma viúva habitava uma velha casa de fazenda?


Estávamos na cidade .

 

Tínhamos centenas de vizinhos e nenhum deles disse nada sobre isso.


Todos eles pareciam - bem .


Não nos incomodou no início, não o suficiente de qualquer maneira, não nas primeiras semanas. Não somos particularmente sociais e não passamos muito tempo com nenhum deles. Quem se importava se eles estivessem um pouco - desligados ?


Isso mudou quando conhecemos nosso novo vizinho no apartamento 703, Henry, um jovem sarcástico e extremamente inteligente recém-saído da universidade. Ele estava trabalhando em uma empresa de TI algumas ruas abaixo do prédio e mudou-se para evitar o tráfego. Nós nos conectamos imediatamente, de uma forma que apenas pessoas com interesses semelhantes podiam, e começamos a visitá-lo em seu apartamento, na maioria das vezes para jogar jogos de tabuleiro, nos quais ele era um verdadeiro sábio. Ele proporcionou companheirismo sincero, uma qualidade que nos faltava desde nossa mudança.


Ríamos com frequência e, de brincadeira, às vezes, discutíamos como todas as outras pessoas no prédio pareciam ter os mesmos modos. Em uma noite em particular, Henry até mesmo tirou uma de suas meias e, colocando-a na mão com um movimento, fez com que falasse com uma voz que imitava o gerente.


TENTE. FIQUE SE VOCÊ GOSTAR.


Rimos tanto que doeu, e comentamos na época que ele havia dito exatamente a mesma coisa para nós.


Ele disse, então, com um sorriso, que se acreditava em fantasmas, eles deveriam ter habitado um prédio como este.


Por alguma razão, isso fez com que todos nós ficássemos em silêncio por um tempo.


Fantasmas. Impossível.


Mas ainda...


Lembro-me da noite em que Henry mudou.


Só cheguei em casa bem depois das nove. Sarah já havia preparado nosso famoso pão de alho e salada grega, que levaríamos para jantar no apartamento de Henry. Planejamos jogar Banco Imobiliário depois. Como sempre, Henry generosamente começaria o jogo com muito menos riqueza para nos dar uma chance melhor de ultrapassá-lo.


Sarah me repreendeu de brincadeira, me beijou na porta e disse que nos atrasaríamos, embora ambos soubéssemos que Henry não ligaria. Ele provavelmente preferia.


Eu penteei meu cabelo e fomos para a porta ao lado.


Ninguém respondeu na primeira batida.

 

Ou na segunda.


Estávamos ficando preocupados na terceira.


Sua porta estava trancada. Nunca estivera trancado antes, nem mesmo quando ele foi trabalhar, o que sempre tentamos alertá-lo poderia causar problemas na cidade. Ele disse que não tinha muita coisa de valor e, se alguém quisesse, poderia ter.


Quando eu estava prestes a chamar seu nome, e então, potencialmente a polícia, ouvimos algo além da porta, um arrastar de pés, lento, arrastando-se pelo chão de madeira marcado.


A porta se abriu e Henry estava lá, sorrindo tão largo que parecia que doía. Quando ele falou, sua voz estava muito alta e as palavras saíram desconexas.


"OLÁ AMIGOS. POR QUE VOCÊS NÃO ENTRAM? ”


Sarah e eu trocamos um olhar e o seguimos para dentro.


Quando perguntei como ele estava, ele evitou totalmente a pergunta. Quando colocamos nossa comida na mesa, ele nem olhou para baixo. Ele olhou, ainda, em nossos olhos, movendo-se de Sarah e depois de volta para mim a cada poucos segundos, como se seu próprio movimento fosse uma espécie de temporizador invisível.


Ele não comeu, e nós também não.


Não suportávamos aqueles olhos.


Não podíamos suportar aquele sorriso enorme e alegre, sem vacilar, mesmo quando seus músculos começaram a se contrair.


Nunca.


Saímos assim que pudemos. Mencionei que de repente não estava me sentindo bem, que estava muito quente e poderia estar começando a ter febre.


Henry não recebeu mal a notícia.


Ele continuou sorrindo. Sorridente. SORRIDENTE.


Quando saímos, olhei para trás apenas uma vez, vendo a porta ainda aberta, vendo Henry ali com aquele sorriso extravagante estampado no rosto, seu novo lar permanente.


Eu me perguntei se, de alguma forma, ele não era mais Henry.


Eu me perguntei se ele era outra pessoa inteiramente mudada.

 

E pior ainda, eu me perguntei quando entramos em nosso apartamento e fechamos e trancamos a porta, se ele ainda estava ali, do lado de fora, com aqueles olhos arregalados e dentes brilhantes abertos como perfeitas teclas de piano.


Fiquei pensando a noite toda, embora estivesse com muito medo de verificar o buraco da fechadura.


Não vimos Henry por algum tempo depois disso.


Paramos de vê-lo ir trabalhar e, depois de mais uma semana, percebemos que também não vimos ninguém entrar ou sair do prédio.


O pensamento começou a vir com mais frequência então, que eles estavam aqui, sempre aqui, em pé, bem atrás de suas portas fechadas, sorrindo loucamente, esperando a interação.


Eu tirei isso da minha mente e tentei me concentrar no meu trabalho.


Se não gostássemos, sempre podíamos sair.


E talvez o fizéssemos, no final do mês.


Então Sarah pegou o elevador.


Ela estava atrasada para o trabalho e tinha muito o que fazer naquele dia para sua apresentação. Eu me ofereci para ajudá-la a descer, mas ela recusou. Acenei para ela do lado de fora da porta, sentindo-me estranhamente assustado e completamente sem saber por quê. Eram oito da manhã e não havia razão para ter medo. Nada lógico, de qualquer maneira. Nada além de pensamentos ansiosos que encheram minha cabeça de pesadelos.


Eu a vi entrar no elevador, vi aquela mandíbula de metal se esticar, projetando-se como mandíbulas, e se fechar quando ela entrou. Eu pensei, enquanto a observava envolvê-la naquela luz vermelha brilhante e começar a levá-la para baixo,sabia que algo estava terrivelmente errado.


Eu queria chamá-la, mas me senti relutante.


Mas ela sorriu, acenou e me soprou um beijo.

Ela não voltou para casa naquela noite.


Liguei para o trabalho dela e tive a certeza de que ela nunca apareceu naquele dia. Seu chefe ficou furioso, mas essa era a última das minhas preocupações.


Liguei para a polícia e disse que ela estava desaparecida. Eles vieram e me encontraram no prédio. Liguei para a família dela. Procuramos por ela, mas não encontramos nada. Eles me questionaram. Eu não tive nenhuma resposta. Contei a eles sobre aquela manhã, como ela sorriu, acenou e entrou no elevador a caminho do trabalho. Isso era tudo que eu sabia.


Estávamos perfeitamente felizes.


Eu nunca a machucaria.


Ela estava desaparecida por três dias antes de voltar.

 

Eu havia parado de trabalhar e estava deitado na cama, sozinho no escuro. Eu estava perturbado. Eu não sabia o que fazer. Eu estava procurando por ela há dias,exausto.


Ouvi chaves se movendo do lado de fora da porta e meu coração deu um pulo.


A maçaneta girou e ouvi seus pés se arrastando.


Corri para ela e a envolvi em meus braços.


Seus músculos não se moveram.


Ela estava ereta, perfeitamente.


"OLÁ, AMOR", disse ela. "ESTOU EM CASA."


Aquela voz. Eu já tinha ouvido isso antes.


Eu agarrei seu rosto em minhas mãos e a puxei para perto.


Eu mal conseguia ver seus olhos no escuro, mas sabia o que iria encontrar lá. Nada. Distância. 

Frio, inquebrável, vazio.


Isso foi há dois dias.


Ela não vem para a cama.


Ela está parada perto da porta.


Eu não sei o que fazer.


Não saio há dias.


Eu sou o único que sobrou.


Eu não posso sair.


Eu sei disso agora.


Não vai me deixar.


Eu sei que ela mentiu.


Eu jamais poderei sair.


Eu vou pegar o elevador.


Eu não tenho escolha.


Ele está me chamando agora.


Minha cabeça está zumbindo.


Está me dizendo o que fazer.


Não sei aonde isso vai me levar.


Eu posso ouvir o carrilhão no corredor.


Eu posso ouvir aquele portão de metal sendo aberto.


Me convidando.


Me convidando para entrar.


Estou sozinho.


Eu não quero mais ficar sozinho.