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11 novembro, 2020

A casa que ninguem construiu


As casas antigas têm um espírito próprio.

Normalmente não notamos durante o dia quando o sol está quente e as janelas estão abertas. A brisa fresca traz aromas familiares do jardim e das vinhas de jasmim floridas serpenteando por entre as pedras em ruínas. Sempre tem coisas demais acontecendo em minha casa durante a noite para perceber, como minha mãe se movimentando pela cozinha ou meus dois irmãos brigando por causa de seus jogos na sala de estar. De algum lugar lá em cima ecoa as gargalhadas do meu tio junto com as risadas padronizadas de seus programas de TV. E, junto a tudo isso, tem o jazz tocado com na velha vitrola no recinto do meu pai, abafado e distante em torno das muitas voltas e reviravoltas dos corredores estreitos.


A casa é confortável, aconchegante e segura até que todos tenham ido para a cama e a casa comece a respirar. Quando as sombras se movimentam nos cômodos quietos, e o ar estagnado se arrasta pesado com um sabor desconhecido. As luzes nunca são suficientes para encher a sala, não importa quantos interruptores estejam ligados. E o silêncio nunca é totalmente silencioso: uma sensação deslumbrante de vazio ainda mais suave do que as tábuas do assoalho rangendo ou o farfalhar das venezianas de madeira contra o vento. Há algo mais, algo mais profundo, quase como se alguém descobrisse como tocar o som do silêncio para encobrir algo que não deveríamos ouvir.


Existe uma regra oculta em nossa casa que nos mantém calados à noite. Às vezes, nós nos pegamos nos corredores a caminho do banheiro ou quando estamos mexendo na geladeira procurando por lanches. Nos cumprimentamos com um aceno de cabeça ou um gesto, ou às vezes com um sussurro, se necessário, mas nunca falaremos em voz alta. Mesmo quando crianças, meus irmãos e eu nunca quebramos o silêncio à noite. Sempre foi desrespeitoso, como gritar na igreja, como se estivéssemos interrompendo algo sagrado que já estava lá antes de nascermos e que permaneceria naquelas paredes muito depois de partirmos.


- A fiação elétrica antiga pode ter esse efeito -  disse meu pai certa vez. Ele nunca elaborou exatamente o que "aquele efeito" era, ou nos deu uma explicação de como uma caixa de fusíveis com defeito poderia parecer como se algo no escuro estivesse ouvindo você respirar. 

- Eu meio que gosto disso, sabe? Me faz sentir confortável, como se a casa estivesse me protegendo durante a silenciosa noite. ”


- Tem a ver com o sistema de ventilação - disse minha mãe. - Eu também percebi quando mudei para cá, mas, honestamente, eu quase não noto mais nada. Apenas deixe uma janela aberta se isso estiver incomodando você.


Não sabia como dizer a ela que a casa não queria as janelas abertas à noite. Era como se eu empurrasse um dos meus irmãos para fora do sofá e imediatamente lhe dado as costas. Eu não teria que ver seu rosto para saber que ele estava com raiva. Ele não precisaria gritar ou me bater de volta. Eu apenas sentiria a raiva se agitando atrás de mim no ar, uma coisa quase que inconscientemente, me encararia até que eu me desculpasse e devolvesse seu assento. Era assim com a casa, sufocando-me com sua raiva até que fechasse a janela e a deixasse se acalmar.


- Ninguém constrói uma casa para se sentir assim. Se você está me perguntando por que essa casa é assim, é porque ninguém nunca construiu esta casa, ela simplesmente cresceu assim.


Gostei mais da explicação do meu tio, embora nunca a tenha entendido totalmente. Meus pais estavam sempre ocupados com alguma coisa, e meus irmãos nunca me deixariam esquecer isso se eu dissesse que estava com medo. Meu tio gostou da minha visita, porque ninguém mais o fez. Suas pernas não funcionavam mais e ele nunca se levantava, exceto para se arrastar até o banheiro. Eu me sentava na ponta da cama depois de trazer comida para ele e o ouvia enquanto ele me contava sobre os sentimentos que eu não conseguia descrever.


- Não me venha com essa cara. As pessoas agem como se eu estivesse quebrado só porque não ando mais por aí, mas estar dentro de casa o tempo todo deu a mim e à casa a chance de nos conhecermos. Ela me contou como as pessoas às vezes vêm e cortam árvores e constroem casas, e como a terra é prejudicada por isso. Como eu sei? Porque assim que essas pessoas se levantarem e forem embora, a terra vai tentar se curar. Os jardins começarão a tomar conta da casa, o mato crescerá alto, os animais começarão a pular cercas e, com tempo suficiente, você nunca saberá que houve gente lá.

É a mesma coisa com esta casa, só que ao contrário. A terra aqui foi ferida por algo muito tempo atrás, ferida por algo que estava aqui antes mesmo dos colonizadores chegarem. E então a terra fez o que sempre faz, ela cresce e se cura. Algumas feridas são tão profundas que nunca cicatrizam direito, então a terra tem que crescer como uma casa para prender a ferida dentro e nunca deixá-la ir. 


- Você só está dizendo isso porque está pensando em suas pernas - eu disse a ele. - Como é que uma casa vai crescer do chão, com todos os fios, canos e coisas assim?


Meu tio riu, a risada profunda e familiar que era tão diferente daquele lugar que poderia muito bem vir da própria casa. 

- A casa não cresceu do zero, com tapetes, papel de parede e todo o resto. O formato cresceu, inchando como uma bolha na terra. E então as pessoas chegaram e devem ter pensado que era uma casa abandonada que alguém antes deles construiu. Então, eles reformaram e tornaram confortável para as pessoas viverem - o mais confortável possível, considerando de onde veio - e agora é nossa vez de cuidar do lugar. 


- E a dor que a fez crescer? Para onde foi?


- Você não estaria aqui perguntando se já não soubesse. Você pode não ouvir isso em muitas músicas, mas existem algumas mágoas que nunca somem. Portanto, você também pode torná-la amigável, porque ela estará lá até o fim da sua vida. Se a casa decidiu que não quer que estejamos aqui, então você não vai precisar ouvir isso de um velho como eu.


Eu não teria me lembrado dessas palavras se elas estivessem erradas. Acho que minha casa realmente se importava com meu tio. E meu tio deve ter se importado, porque mesmo quando piorou não deixou meus pais o levarem ao hospital. Ele nunca levantou a voz, mas deu o aviso de que haveria raiva tentassem tira-lo de casa. Lembro-me de ter pensado na época como ele disse isso estranho, que 'haveria raiva', e não que ele ficaria com raiva. Mas a única coisa que parecia importar era que ele estava ficando parado e meus pais estavam muito preocupados. E assim como a casa, eles nunca me disseram exatamente o que estava errado.


Não dormi muito naquela noite e estava acordado quando ouvi meu tio ofegando por ar. Fiquei surpreso que meu primeiro pensamento foi ficar com raiva dele por fazer tanto barulho quando a casa queria ficar quieta. O som do meu tio estava ficando mais desesperador, porém, e não demorou muito para eu acordar meus pais. Tudo ficou alto depois disso: meus irmãos gritando, meus pais discutindo e até mesmo o uivo de uma ambulância ecoando pela nossa rua. Acho que meu tio teria tentado lutar contra eles se ainda estivesse acordado quando o carregaram. Sei que ele teria feito mais para nos convencer se pudesse, para nos fazer acreditar que haveria raiva quando ele se fosse.


Meus pais foram junto a ambulância, e só eu e meus irmãos sabíamos o que aconteceu. Já estávamos com medo e ansiosos pelo nosso tio. Não teria demorado muito para nos irritar ou nos fazer imaginar demônios saindo da escuridão. Meus irmãos estavam tão preocupados com o que aconteceu que não paravam de falar, no entanto - sobre todos os vizinhos parados em sua varanda, sobre as máquinas de bip que os médicos carregavam, sobre o que iria acontecer com meu tio. Para a frente e para trás, cada vez mais alto, depois gritando novamente quando um deles dizia que meu tio ia morrer.


A gritaria não parou, nem mesmo quando os dois finalmente calaram a boca. Ouvimos sons exatamente como meus irmãos, o som de correria pelos corredores de cima. As vozes ameaçavam umas às outras com atos tão cruéis e violentos que me faziam estremecer de agonia fantasmagórica. Meus irmãos pareciam não entender o que estava acontecendo e ficavam cada vez mais zangados um com o outro, ameaçando-se de verdade enquanto acusavam o outro de tentar assustá-los. Então um deles colocou as mãos em volta do pescoço do outro, e o outro o fez da mesma maneira, e ambos estavam se enforcando e o rosto em chamas enquanto cada precioso fôlego era jogado fora em um rosnado de ódio um pelo outro.


Eu involuntariamente prendi a respiração com a tensão enquanto tentava separá-los, e foi então que percebi que algo ao nosso lado ainda estava respirando. Quente, pesado e furioso, a força crescendo a cada respiração desencarnada. O ar se arrastava sobre nós com tanta força que nos puxava escada acima, a explosão de cada puxão rítmico chicoteando as cortinas, torcendo os tapetes e arrancando os retratos da parede. Arfando quente, úmido e insaciável, e o tempo todo meus irmãos não faziam nada além de lutar entre si.


Os gritos e ameaças cruéis encheram o ar com mais força aqui em cima, acompanhados pelas vozes de outras pessoas que eu não reconheci. Homens e mulheres de todas as idades, suas vozes cheias de um ódio e raiva desprezível, como se só nós fôssemos a causa de todos os males e misérias em suas vidas. Cuspindo, rugindo de ódio, desejando nossa morte e gritando conosco entre cada respiração infernal. Mais difíceis de suportar eram as vozes das crianças, lamentando, implorando e gritando conosco com tanta repulsa e desgosto. O sofrimento deles me fez sentir tão culpado que naquele momento eu estava absolutamente convencido de que merecia qualquer punição que estava prestes a receber.


Um dos meus irmãos havia parado de lutar agora. Ele estava inerte no chão com as mãos dos outros ainda presas ao pescoço, os dois rostos quase irreconhecíveis para a selvageria de seu esforço. O calor e a pressão estavam diminuindo ao nosso redor, no entanto, e o vento estava recuando pelas rachaduras no assoalho e nas paredes. Agora, de repente, o ar tornou-se cortante e frio à medida que cada janela e porta era arremessada contra as dobradiças, encaixando-se no lugar como uma fratura de osso. Eu soube imediatamente que a casa estava me dando a chance de deixá-la definhar em sua dor e seu ódio. Não posso explicar como, mas sabia que estaria seguro se corresse agora, deixando meus irmãos com o destino que lhes foi dado pelas mãos dos outros.


Passei por uma das portas abertas que me foram oferecidas, mas não para sair. Em vez disso, fui para o quarto do meu tio, subindo em sua cama e puxando o cobertor que ainda estava úmido de suor. Cobri-me naquele cobertor e chorei até que o último eco assustador de raiva se acalmasse e depois se transformasse em algo mais profundo, aquele som de gargalhadas suave que sempre vinha como se viesse da própria casa.


Há um espírito na casa que ninguém construiu. E com ela carrega uma dor angustiante e tão antiga que acho que nunca vai sarar. Mas conheço esse espírito pelo nome e o chamo de meu tio. Eu disse a ele que está tudo bem se ele nunca for embora, porque eu nunca vou deixá-lo também. À noite, mantenho as janelas fechadas e fico muito quieto, e juntos encontramos a paz. E algum dia outro cuidará de sua dor, e eles saberão que sou eu, e eu nunca estarei sozinho.


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